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POBRE CAIPIRA, DESBRAVADOR DO BRASIL.

POBRE CAIPIRA, DESBRAVADOR DO BRASIL.

Caipira – do tupi Káa – mato, Pir ou Apir – cortador – cortador de mato
Capiau – do guarani, homem do mato.
Matuto – habitante do mato
Jeca, tabaréu- homem da roça

Se o sertanejo antes de tudo, é um forte,

o brasileiro é, primordialmente, um caipira.

Alguém sabe como começa o desbravamento de uma região onde só existe matas, bichos, índios?

É quase sempre do mesmo jeito.

Alguém com coragem adentra o sertão, seja através de um rio ou de uma trilha de passagem de índios-ou por ambos os caminhos, escolhe um lugar a seu gosto e fixa sua moradia.

Longe das facilidades da civilização, é nesse momento que surge a capacidade inventiva do caboclo, do sertanejo, que tem de encontrar alternativas práticas para as suas necessidades do dia-a-dia.

Surge então a tecnologia caipira, onde o homem passa a tirar da mata o seu sustento, aprendendo coisas observando a mata, os bichos e os índios.

Como do nada, aparece a arapuca, o alçapão, a esparrela e o mundéu para a caça; os cestos e covos (ou covu) de taquara, o samburá e o pari para a pesca.

Do rancho de galhos e folhas surge a casa de pau a pique, coberta de folhas de coqueiro ou sapé, que depois se transforma numa casa de troncos ou madeira, conforme as condições e utensílios disponíveis.

Não tem luz elétrica, aí surge a lamparina de gordura animal ou querosene, que se juntam ao fogão de forquilha, de bivaque ou de jirau, às colheres e gamelas de pau, ao fogão e forno de barro e lenha.

Não tem como conservar a comida então surge a carne seca, salgada, de sol ou conservada na banha de porco, seguidas pelas conservas e compotas que viriam com o passar dos anos, dando um mínimo de conforto a uma dura vida de trabalho.

Surgem os monjolos, os engenhos, as moendas, os pilões caseiros e d’água.

Não tem trator, usa o arado a tração animal; não tem caminhão, entra o carro de bois.

Um dia, surge a mulher, seja uma nativa ou uma corajosa mais civilizada e ali começa uma família.

Aparece então o tear, as rocas, os bordados, os brinquedos feitos em casa, como o pião e a piarra, o bodoque, estilingue ou baladeira, a gangorra,

Se o lugar é bom e fica numa rota estratégica, ele vira uma referência nos mapas e nas conversas dos viajantes, até mesmo em uma pousada para os tropeiros e outros aventureiros que buscam o sertão.

Aí começa a chegar mais gente, mais famílias morando ali perto.

O rancho vira um agrupamento, um bairro rural, que vira um povoado, uma vila, um embrião de um futuro patrimônio ou distrito de uma ainda mais futura cidade.

Nesses rincões as culturas se entrecruzam, miscigenando as tradições, embaladas pelas festas religiosas, pelos bailes na roça, as quermesses e festas juninas.

Essa convivência sadia cria um elo de ligação cultural que consegue preservar muito deste aprendizado rural, que tem passado de pai para filho pela oralidade através do artesanato, dos catiras, das folias de reis, das modas de viola, instrumento que de há muito já fazia parte da sua rotina cultural, trazida por algum tropeiro-, da literatura oral, dos modos e costumes da mais brasileira das culturas.

Esse é o mundo do caipira, gerado nas cercanias do Colégio São Paulo, no Planalto do Piratininga, quando várias famílias de caboclos, chamados na época de mamelucos, mestiços do português branco com as nativas da terra, trouxeram para seu entorno suas famílias, seus ranchos e suas roças de subsistência.

Chamados a partir daí de paulistas, ao formarem suas bandeiras na busca de índios para escravidão, bem como de metais preciosos, adentraram sertão afora, conhecedores que eram dos segredos da mata, descobrindo e formando novas terras, que se transformariam em Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, dentre tantas outras.

Formando seus ranchos pelos caminhos, viveram a vida do mais autêntico brasileiro, o homem da roça, do sertão, da futura zona rural, do coração de tantos brasis que existem por aí afora e adentro, perfazendo um Brasil maior, imenso, cheio de coisas para contar e mostrar.

Sim, porque todos nós temos um pouco de caipira no sangue, na lembrança de nossos pais ou avós, na herança dos brinquedos e brincadeiras, da sabença popular que tanto nos ensinou e que desperta na nossa memória quando ouvimos uma música caipira de verdade.

Hoje, na cidade, nos resta a admiração por aquela gente que teima em continuar no campo, a mercê dos erros dos governos, que não percebem que a roça está acabando, que os caipiras estão ficando velhos, que correm até o risco de sumir, de virar espécie em extinção, porque tudo contribui para seus filhos irem embora, buscando a ilusão da cidade grande.

Seus filhos até mesmo torcem para ganhar uma casa popular em algum patrimônio mais próximo do progresso, na ilusão de que a cidade está crescendo, sem perceber que grande parte dos novos moradores está vindo dos campos, está deixando a tradição da lavoura, que na maioria das vezes não lhes oferece nem mais a condição de subsistência.

O nosso Brasil Caboclo corre o risco de sumir, de se perder no emaranhado de prédios da cidade grande, porque o filho do homem da roça está indo embora, deixando cada vez mais para trás a sua verdadeira condição de caipira, vítima das situações sócio econômicas que praticamente incentivam o êxodo rural.

Os sinais surgiram devagar, mas de maneira avassaladora.

Com os filhos indo embora, logo acabaram com as escolas rurais, um grande erro e primeiro passo para as falências sociais dos patrimônios e bairros rurais, que ofereciam as únicas opções de lazer e entretenimento para o alegre e sadio convívio dos compadres e comadres da roça, dentro daquela amizade sincera que só o homem do campo sabe cultivar.

Adeus quermesses, jogos de malha, futebol de domingo, rodas de viola, folias de reis, folguedos e folgados, até mesmo as festas juninas, obrigações quase centenárias de reverência aos santos, no agradecimento das boas colheitas e na proteção da dura vida de agricultor.

Depois, acabaram com os sonhos dos lavradores, dos sitiantes que sobreviviam com a família tirando da terra seu sustento, pois chegou o comércio e suas implicações sócio econômicas.

A sina do agricultor realmente é pesada, pois além das variações do clima e do mercado, passou a depender também das variações do governo.

Seus filhos acham que não vale mais a pena seguir nessa labuta tão ingrata e sem futuro e saem mundo afora atrás de estudo, trabalho e sucesso na vida, não necessariamente nessa ordem.

Os pais que continuam na roça torcem para que pelo menos o caçula fique, que pegue gosto da coisa e possa assim perpetuar a espécie.

Ou então, quando e se voltarem os mais velhos, depois de vencerem na vida da cidade grande, possam retomar o juízo e cuidar do futuro do pedaço de terra que vão lhes legar.

Rezam para que cultivem alguma coisa e que não transformem o velho sítio apenas em uma área de lazer, para os encontros de fins de semana.

Será que nossos ditos líderes não percebem que a morte lenta da vida rural preconiza a morte rápida da vida urbana?

Enquanto isso, nós, tabaréus perdidos na cidade, ficamos procurando nas TVs os programas caipiras, os Rolandos Boldrins desse nosso Brasil Caboclo que a exemplo de nossa falecida Inezita Barroso, ainda teimam, graças a Deus, em resgatar nossas raízes, driblando a chamada música sertaneja que, atrás do sucesso comercial, se traveste de caipira com sotaque country e sons eletrônicos.

Ainda bem que, apesar de tudo, o caipira resiste.

Vira e mexe a gente vê uma nova geração gostando do som da viola e coroando a teimosia dos defensores da cultura caipira, que ainda persiste em vários rincões e grotões por aí afora.

Se de vez em quando ela parece que some, que volta para a roça, é uma estratégia de sobrevivência.

Ela vai estar sempre voltando através dos clássicos de Tonico e Tinoco, Zico e Zeca, Liu e Léo, Cascatinha e Inhana, Zilo e Zalo, Tião Carreiro e Pardinho, na sanfona de Mário Zan e tantos outros eternos ícones da nossa cultura popular, mesmo que copiados em MP3 dos arquivos da internet.

Acho que, apesar de tudo, por muito tempo ainda o caipira vai existir, enraizado nas nossas memórias, nas lembranças da nossa geração.

Acredito que, mesmo no futuro, se ele virar apenas registro nos arquivos da história, ou até mesmo mais uma lenda urbana, sei que ainda vai aparecer um caipira, nem que seja um “Caipira Cover”, para remexer nossa saudade e nos fazer lembrar dos bons tempos.

Mas espero que, antes disso acontecer, eu já esteja deitado em uma rede, á sombra de uma grande figueira, ouvindo o cantar dos pássaros se misturar nas águas de uma cachoeira, no lugar mais próximo que possa ser do céu.

Renato de Jesus Souza Silva (Jesus de Burarama)

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