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HISTÓRIA DA MÚSICA SERTANEJA

HISTÓRIA DA MÚSICA SERTANEJA

Dentro da rica e enorme diversidade da música popular brasileira, a música sertaneja ocupa um lugar de destaque.

Mas afinal, qual a diferença entre música sertaneja e música caipira?

Para nós, a música sertaneja é aquela originária de qualquer “sertão” brasileiro, seja da região de caatinga do nordeste , dos cerrados e vales de Minas, Goiás e Mato Grosso, como também dos pampas gaúchos, com todas as suas peculiaridades, aqui entendendo sertão como toda região agreste, bem interiorizada, afastada das povoações, existente por todo o país.

Já a música caipira, ela é específica do sudeste, praticamente paulista, mas que com a expansão colonizadora foi “contaminando” Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso e até o Rio de Janeiro.
Nascida nos grotões do interior de São Paulo, ela foi, juntamente com a viola, lapidada gradativamente pelos matutos e tabaréus, principalmente pelos caboclos, os filhos de europeu com nativa brasileira, que vieram a ser os pais de todos os caipiras, lembrando aqui apropriadamente que caipira vem do tupi e dentre várias interpretações significa basicamente “homem do mato”.

Criada praticamente às margens do Rio Tietê, na época a única via de acesso para o interior paulista, a música caipira embalava as festas religiosas, as danças de Santa Cruz, as catiras e cateretês remanescentes da catequese dos jesuítas, com destaque para as Folias de Reis, consideradas por muitos como o embrião das modas de viola, que serviu de base para os demais gêneros da nossa música rural.

Divulgada a partir da década de 20 por Cornélio Pires, que teve a iniciativa de gravar em disco os primeiros sons da cultura caipira, ela se espalhou pelos circos do interior e pelo som dos rádios Brasil afora, levando principalmente para as cidades uma mostra do mundo rural de então.

Nesse espaço queremos apresentar algumas opiniões sobre a história real do desenvolvimento da música sertaneja, a partir da ótica de vários estudiosos do assunto, buscando dar subsídios a todos que buscam esse conhecimento.

HISTÓRIA DA MÚSICA SERTANEJA
Abrindo aqui esse proseio, a visão do pesquisador José Ramos Tinhorão, no fascículo do LP “Música Sertaneja”, da coleção
História da Música Popular Brasileira, da Abril Cultural, l983
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Nos sons do Brasil rural, chapéu de palha, pito e viola

Estreitamente vinculado às suas raízes rurais, o homem do campo que vem para a cidade sente a falta do som de sua região, constituindo, assim, uma importante faixa do público consumidor da chamada música sertaneja.
O homem do campo costuma divertir-se sobretudo em festas realizadas ao ar livre, que propiciam a dança e o canto coletivos. E foi justamente para tornar mais real o caipira do Centro-Sul estilizado pelo teatro que, no final da década de 20, se trouxe para conhecimento da cidade o som de sua música. Música caipira, a princípio, e, mais tarde, já englobando vários estilos, genericamente denominada de “sertaneja”. 
O habitante da cidade sempre se sentiu atraído pelo exótico da vida rural. Por isso mesmo, desde o seu nascimento, na primeira metade do século XIX, o teatro de costumes no Brasil já focalizava o homem do campo. De início, é bem verdade, não o lavrador ou o vaqueiro, mas o proprietário de terras que, tendo dinheiro para viajar até a capital, acabava entrando em choque com os hábitos da vida urbana.
A existência de um tipo de música denominada sertaneja, para assim distinguir-se de outra dirigida primordialmente ao público urbano, tem sua origem na histórica dualidade sócio-cultural representada pela velha oposição entre o campo e a cidade.
Na verdade, desde que a partir do século XI as necessidades do comércio começaram a atrair parte da população rural para os centros de serviços e de produção industrial-artesanal que seriam as cidades modernas, as diferenças de relações entre os homens nas duas estruturas iriam determinar características culturais e psicológicas distintas: o habitante do campo, continuando em contato mais direto com a natureza, vive em ambiente mais calmo e tem costumes mais despojados e mais simples (o que o faz aparecer como ingênuo ou simplório); o morador da cidade, estabelecendo em seu meio relações mais dinâmicas, graças ao mecanismo das atividades industriais e comerciais, convive com a agitação e o burburinho (o que o faz parecer mais ativo e mais esperto).
Da mesma forma, na área da cultura e do lazer, essas diferenças levam o homem do campo a divertir-se habitualmente em grupo (suas festas, realizadas ao ar livre, propiciam a dança e o canto coletivos), enquanto o da cidade tende a reunir-se em locais fechados, o que acaba conduzindo o ato de divertir-se à formula do espetáculo, com a divisão entre o público e o artista, e, no plano musical, ao aparecimento da arte individual da canção.
De fato, não deixa de ser ilustrativo o fato de, ao realizar-se em 1502, em Portugal, a primeira representação teatral para um público restrito – ou seja, as pessoas da família do Rei D. Manuel, reunidas no aposento em que a Rainha D. Maria descansava do parto do Príncipe João III – o autor-ator Gil Vicente estar caracterizado de vaqueiro. Um ser tão estranho à cidade que – e aí estava a graça do espetáculo – já chegava reclamando da oposição feita à sua entrada, o que o obrigara a desvencilhar-se grotescamente dos repelões:
“Pardiez siete arrepelones
Me pegaron ala entrada,
Mas yo di una punada
A uno pelos rascones,
Empero si yo tal supiera
No viniera
Y si viniera, no entrara,
Y si entrara, yo mirara,
De manera
Que ninguno no me viera”.

Pode-se dizer, por tanto, que o sucesso da idéia de Gil Vicente nesse seu  Monólogo do Vaqueiro resultou do mesmo impulso de curiosidade ante o exótico da vida rural que se repetiria no Brasil trezentos anos depois, quando as condições da sociedade local conduziram o público urbano a uma atitude semelhante em relação dos tipos do campo: no Nordeste, o vaqueiro e, no Centro-Sul, o lavrador, conhecido primeiramente como roceiro e, depois, como caipira.
A cidade descobre a realidade do mundo rural
Também no Brasil o palco foi o campo neutro encontrado para a apresentação desses tipos humanos do mundo rural que o desenvolvimento das áreas urbanas começava a afastar progressivamente para regiões cada vez mais longínquas do interior. Em 1838, quando nasce o teatro brasileiro de costumes com o carioca Martins Pena, sua primeira comédia representada tem por título O Juiz de Paz da Roça. E a segunda – de enredo ainda mais concludente da dualidade dos estilos de vida do campo e da cidade – recebeu o título inicial de Uma Família Roceira, antes de sair com o nome de A Família e a Festa da Roça. Tudo isso sem contar que, entre os papéis de Martins Pena, achou-se o manuscrito incompleto do que teria sido sua primeira tentativa como dramaturgo, e essa comédia nunca encenada ou editada chamava-se Um Sertanejo na Corte.
A princípio, é bem verdade, o que o teatro exibia sob a figura do roceiro ainda não era o homem do povo, mas o dono de terras ou o figurão local que, tendo dinheiro para eventualmente viajar à capital, acabava entrando em choque com os costumes da vida urbana. Isso aconteceria, em 1862, com o personagem de Maria ou a Bela Paulista, do Dr. Teodoro J.H.Langaard – que, com sua história do tabelião de Botucatu apaixonado pela esperta moça da capital, anteciparia de quase meio século o enredo da peça Quebranto (1908), de Coelho Neto – e, em 1877, com o roceiro paulista Nhô Quim – personagem de José Piza – ingenuamente envolvido por uma cocotte francesa só interessada em seu dinheiro, tal como o fazendeiro Eusébio, de A Capital Federal (1887), de Artur Azevedo, na  história da família mineira em visita à cidade grande.
Disso tudo depreende-se que, desde meados do século XIX – e é preciso não esquecer que o personagem central da comédia Uma Véspera de Reis, de Artur Azevedo, consagrara em 1875 o ator Xisto Bahia na figura de um tabaréu baiano – o público das grandes cidades, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo, já se encontrava bastante distanciado do campo a ponto de receber, com o vivo interesse da curiosidade, os estereótipos da sociedade rural que o teatro, a literatura e posteriormente o disco lhe iam fornecer sob a forma de histórias regionais e de poesia e música sertanejas.
De qualquer forma, o encontro do público citadino com a figura do caipira do Centro-sul, agora mais próxima do tipo real, dá-se quando esse filão das histórias engraçadas de coronéis e figurões roceiros se democratiza e, por meio do teatro de variedades dirigido às camadas mais baixas, passa das comédias, das burletas e das revistas para as pequenas peças e arranjos cômicos das companhias populares de circos, pavilhões e cine-teatros.
Esse caipira de botinas grosseiras, chapéu de palha desfiada, camisa xadrez e calças remendadas – mais ou menos conforme o personagem Jeca Tatu, do livro de contos Urupês, de Monteiro Lobato, e logo popularizado pela história em quadrinhos editada pelo Laboratório Fontoura – surge no teatro popular de São Paulo em 1916, através de uma criação do ator Sebastião Arruda. O sucesso de Arruda podia ser explicado pelo fato de ele fazer encarnar, objetivamente, na figura do caipira paulista (tão semelhante no físico e na cultura aos trabalhadores do campo mineiros e fluminenses), a imagem de um homem rural antes alimentada difusamente pela poesia “cabocla” de Catulo da Paixão Cearense e pelas canções “sertanejas” de Marcelo Tupinambá, invariavelmente invocadoras de caboclos e morenas de um sertão idealizado, sem tempo e sem fronteiras. Nesse sentido, ao mostrar nos palcos populares a figura típica do explorado trabalhador caipira, Sebastião Arruda fazia no teatro mais ou menos o que Monteiro Lobato realizaria na literatura dois anos depois, ao destruir com a realidade (embora caricatural) do seu Jeca Tatu a imagem romantizada dos caboclos que desde meados do século XIX povoavam os romances e contos de escritores como Taunay e Afonso Arinos.
A prova de que o conhecimento dessa figura do caipira real – embora estereotipada – vinha ao encontro de uma expectativa do momento seria fornecida pela verdadeira explosão de caipirismo ocorrida durante o período da Primeira Guerra Mundial. Levada à necessidade de valorizar as possibilidades do mercado interno, em face da interrupção do intercâmbio econômico com a Europa, a burguesia das cidades começava a descobrir a realidade do mundo rural, da mesma forma que a área industrial de São Paulo, ao se expandir, estendia suas fronteiras para as zonas de antigos latifúndios em decadência. E, ao abrir estradas para essa interiorização, eram esses caipiras reais que a gente da cidade via passar a pé, com suas sacolinhas às costas, ou acocorados à porta de choças de pau-a-pique, tirando respeitosamente seus chapéus na cortesia interiorana das boas tardes, enquanto fumavam seus pitos ou seus cigarros de palha.
Tão logo Sebastião Arruda começou a garantir bilheteria para sua pequena companhia teatral com a caracterização do “matuto paulista”, surgiram no teatro de variedades paulistano os seus epígonos: em 1917, a atriz Alda Garrido e seu marido, o empresário-ator Américo Garrido, formam a dupla Os Garridos; em 1918, surgem Os Danilos, par de atores-cantores com repertório também à base de canções “sertanejas” de Marcelo Tupinambá; em 1919, enquanto o ventríloquo Batista Júnior cria tipos caipiras, surge o Trio Viterbo, composto pela cantora Abigail Gonçalves, pelo violonista Américo Jacomino, o Canhoto, e pelo ator Viterbo de Azevedo (que adota o nome de Jeca Tatu); em 1920, aparece o ator Pinto Filho para rivalizar com Arruda (inclusive no Rio); em 1925 ou 1926, surge o casal Os Carolinos; em 1932, é a vez de Genésio Arruda; finalmente, em 1935 – quando a música caipira já se tornara independente do teatro, graças ao disco e ao rádio – aparece no cinema e nos palcos de cassinos a dupla Alvarenga e Ranchinho.
Assim, foi para tornar mais real esse caipira estilizado pelo teatro popular a partir da figura típica do trabalhador das áreas de terras pobres e de latifúndios do Centro-Sul que, pelos fins da década de 20, ia ser trazida para conhecimento da cidade não apenas a representação dos costumes dessa gente, mas também o som de sua música típica.
A comercialização da música caipira: os sons do campo conquistam as cidades
As tentativas de revelar ao público urbano exemplos do universo da música rural, em geral, e da caipira, em particular, datavam do início do século, mas tinham ocorrido sempre de forma episódica. Cronologicamente, o primeiro a mobilizar representantes da arte musical popular do interior para demonstrações perante o público da cidade grande fora o animador da cultura regional Cornélio Pires, em 1910. Após estrear na poesia em fevereiro daquele ano com o livro Musa Caipira – o que o levaria a trocar definitivamente sua cidade de Tietê pela capital de São Paulo – Cornélio Pires teve a idéia de realizar no Colégio Mackenzie, anda em 1910, uma conferência sobre as manifestações musicais da sua região, mas fazendo-as ilustrar pelos próprios caipiras. Ante a curiosidade algo preconceituosa do público desse colégio da elite paulistana, Cornélio Pires fez encenar no palco do auditório um velório tipicamente caipira (que inclui brincadeiras e cantoria para passar o tempo), uma cena de tarefa em mutirão (com os cantos de trabalho competentes), e, ainda pela primeira vez, permitiu a um público da capital ouvir cantorias e danças de catira e cururu.
Cinco anos depois, ainda em São Paulo, o escritor Afonso Arinos, para ilustrar sua conferência sobre Lendas e Tradições Brasileiras, realizada para a Sociedade de Cultura Artística, contratou no Rio de Janeiro o violonista João Pernambuco, que demonstrou com acompanhamento de um regional os números de música e canto citados.
Em 1920, finalmente, o próprio ator Sebastião Arruda, decidido a corroborar a autenticidade de seus números caipiras no Teatro Boa Vista, traria a São Paulo um grupo de violeiros autênticos para se apresentarem em números de desafio no palco.
Na verdade, os compositores urbanos vinham tentando oferecer, pelo menos desde o início da segunda década do século, uma idéia de como soava a música da área da viola paulista, embora ainda de forma estilizada, conforme o gosto vigente nas cidades. Por volta de 1910, Eduardo das Neves e Baiano, cantores pioneiros da Casa Edison, do Rio de Janeiro, gravaram sob o título de Dois Caboclos Paulistas o que pretendiam ser um desafio e, um ou dois anos depois, um Cateretê Paulista. Enquanto isso a própria palavra caipira entrava em curso para indicar a preocupação pelo tema, em discos como O Caipira (monólogo pelo ator Esteves, provavelmente de 1909), Carta de um Caipira (monólogo pelo cantor Cadete, de 1910 ou 1911) e Dois Caipiras na Feira (cena cômica com Eduardo das Neves e os atores Esteves e Porto). Isso sem contar com as músicas apenas instrumentais que começavam a aparecer sob títulos como Cateretê Caipira (gravado ainda na Casa Edison pelo Grupo dos Chorosos, provavelmente em 1916) e Jeca Tatu (polca, gravada pelo Grupo Albertino, ainda em 1918 ou pelos inícios de 1919).
Apesar dessa tendência reveladora de inegável receptividade do homem urbano aos sons particulares da viola caipira, até fins da década de 20 ninguém havia conseguido apresentar ao público das cidades uma criação local capaz de representar, para a música sertaneja do Centro-Sul, o mesmo que, para a identificação de um estilo musical nordestino, representaram as emboladas trazidas ao Rio, em 1927, pelo grupo Turunas da Mauricéia e, em 1928, por Minona Carneiro.
Assim, apesar de, em 1926, o músico de Botucatu Angelino de Oliveira ter-se aproximado do modelo original com sua célebre “toada paulista” Tristeza do Jeca, seria preciso esperar pelas iniciativas de Cornélio Pires na área do disco, nos anos de 1929 e 1930, para datar daí o surgimento, na cidade, de uma música caipira destinada a transformar-se, enquanto música comercial, nos estilos englobados sob o nome genérico de música sertaneja.
Cornélio Pires (Tietê, SP, 1884 – São Paulo, SP. 1958), um autodidata que abandonara a escola no terceiro ano primário e jamais teve emprego fixo, descobrira em 1914 que havia público nas cidades para conferências de humor sobre os costumes dos caipiras de sua região, ou seja, a área fisiográfica que tinha Piracicaba como centro principal. Começou, então, a se apresentar em cinemas e clubes, e seu sucesso nessa atividade (que, por sinal, se estendeu também ao Rio de Janeiro entre 1917 e 1918) chegou a ser testemunhado em 1915 pelo escritor Monteiro Lobato, que, em carta ao amigo Godofredo Rangel, escreveria: “Dá caboclo em conferência a cinco mil-réis a cadeira e o público mija de tanto rir”. A iniciativa de Cornélio Pires atendia a uma expectativa do público urbano e, por isso mesmo, sua idéia logo encontraria seguidores. Em 1916, o jornalista e teatrólogo santista José Batista Coelho, o João Foca, após formar com a atriz Abigail Maia e o pianista e maestro Luís Moreira o Trio João Foca, passou a se apresentar também em teatros, acrescentando uma novidade: suas palestras – entremeadas de anedotas, tal como as de Cornélio – incluíam deixas para Otília Amorim entrar cantando os exemplos musicais citados, sempre acompanhada ao piano por Luís Moreira. Assim, não foi novidade o fato de Cornélio aparecer também em 1928 falando de música caipira com apoio de duplas autênticas, como a formada por Caçula e Mariano, por ele trazida de sua região.
É natural que, ao perceber a boa aceitação do produto cultural que oferecia ao público das cidades com caráter de espetáculo, agora acompanhado do atrativo da música, Cornélio Pires tenha evoluído imediatamente para outra idéia dentro do mesmo projeto, ou seja, a gravação das anedotas que contavam, juntamente com os exemplos musicais, em discos destinados ao comércio. Isso se deu no início de 1929, explicando desde logo a segurança com que Cornélio se dirigiu ao empresário Alberto Jackson Bayngton Jr., representante no Brasil da fábrica de discos norte-americana Columbia, para contratar a prensagem de discos caipiras através da firma Bayngton & Co. Segundo gostava de contar muitos anos depois Ariowaldo Pires, o Capitão Furtado, sobrinho do pioneiro da música caipira gravada, Cornélio Pires foi obrigado a pagar de seu bolso a produção dos discos, porque Bayngton Jr. não acreditou na sugestão, tendo tentado inclusive dissuadir da idéia o animado humorista, orgulhosamente, Cornélio Pires teria assumido então o encargo financeiro e a responsabilidade da adoção de etiqueta própria (selo vermelho com numeração a partir de 20 000) e da prensagem (5 000 iniciais, em vez de apenas mil, como aconselhava a prudência comercial), dispondo-se a vender os discos dois mil-réis acima do preço normal da época.
Ia ser nessa série de mais de cinqüenta discos independentes, gravados de maio de 1929 a fins de 1930 (ou inícios de 1931), que estreariam, lançadas por Cornélio Pires, algumas duplas destinadas a se profissionalizarem, passando a figurar como as primeiras a produzir música caipira com caráter comercial: Mariano e Caçula, Zico dias e Ferrinho, Olegário e Lourenço (esta integrante da Turma Caipira Cornélio Pires, que, em 1930, incluiria ainda outros futuros “caipiras do rádio”, como Raul Torres, então chamado de Bico Doce, e Mandi e Sorocabinha). Aliás, muito simbolicamente, da Turma Caipira Cornélio Pires ia fazer parte também, sob o nome de “Ator Arruda”, o famoso Sebastião Arruda, que, mais de dez anos antes, criara no teatro o tipo clássico do caipira cuja voz, agora, podia ser ouvida em todo o Brasil através dos discos de selo Columbia.
Essas gravações pioneiras de modas caipiras da área de São Paulo, realizadas em duas séries intituladas Folclórica e Regional (e havia ainda a Humorística), conservavam muito fielmente o espírito da música da região de onde provinham as próprias duplas de instrumentistas e cantores. E, como Cornélio Pires viajava pelo interior para colocar pessoalmente os discos entre o público da mesma origem, essas composições, apesar de se apresentarem já sob a forma de produto industrial e comercial, ainda podiam ser consideradas folclóricas. Foi somente em outubro de 1929, quando a fábrica norte-americana Victor – alertada pela existência desse mercado de música rural – entrou na competição, criando a sua Turma Caipira Victor, que a música caipira se transformou, realmente, em música popular urbana de estilo “sertanejo”. E se for preciso uma data, essa seria a de 27 de outubro de 1929, quando a expressão moda de viola (desconhecida em selos de disco até o advento das gravações de Cornélio Pires) apareceu pela primeira vez na etiqueta de um selo Victor, indicando o gênero da composição Casamento da Onça, de M. Rodrigues Lourenço e por ele mesmo interpretada, em dupla com Olegário José de Godoy (disco Victor n.º 33236-B).
A Turma Caipira Victor voltaria a gravar novas modas de viola ao lado de duplas já lançadas por Cornélio Pires, como Zico Dias e Ferrinho e Laureano e Soares. Ainda assim, a moda de viola comercial só viria a encontrar seu grande criador com a “caipirização” definitiva de um esperto compositor urbano de sons “regionais”: Raul Montes Torres (Botucatu, SP, 1906 – São Paulo, SP – 1970), o mesmo que, na série de discos de Cornélio, se escondia sob o pseudônimo de Bico Doce.
Tendo se iniciado na vida artística em 1927, como cantor na Rádio Educadora de São Paulo, com um repertório de apenas três modas de viola, Raul Torres impressionou-se de tal forma, naquele mesmo ano, com a exibição, em São Paulo, dos nordestinos do grupo Turunas da Mauricéia, que pediu permissão a Augusto Calheiros para interpretar seu repertório. E foi assim que, abandonando desde logo a música caipira, passou a funcionar como cantor do conjunto Turunas Paulistas (evidente imitação do grupo vindo de Pernambuco), criado pelo tocador de bandola Cardia.
Com a volubilidade de um autêntico profissional dos primeiros anos de rádio, Raul Torres além de se apresentar na sala de espera do Cine Odeon, na zona central da capital paulista, estrearia em 1929 na gravadora Odeon, não como intérprete de música caipira, mas – aproveitando a onda da época – com a embolada Jacaré no Caminho (em parceria com Atílio Grani) e o samba-canção Olhos de Morena, dele sozinho. Quando, ainda em 1929, o conjunto Turunas Paulistas se dissolve, Raul Torres reúne quatro dos antigos companheiros (Grani, Flauta; Armandinho, José de Lima e Azulão, violões) e, com ele mesmo tocando ganzá, passa a exibir-se pelo interior, aproveitando a popularidade propiciada pelos discos.
A partir de 1933, com o fechamento do estúdio da Parlophon em São Paulo, Raul inicia uma série de viagens ao Rio de Janeiro para gravar, inicialmente, na Odeon e, de 1937 em diante, na Victor, ainda sem se preocupar em fixar-se em qualquer gênero. Assim, na primeira série de dezenove gravações realizadas pela Victor (cantando só, ou em dupla com Serrinha em dezoito composições de sua autoria, e apenas em um caso como cantor de música alheia, Raul Torres misturava às modas de viola, cateretês e toadas de sabor paulista, desde batucadas e emboladas nordestinas, até um inesperado maracatu, realmente difícil de se imaginar criado por um compositor que jamais visitara o Recife.
E foi assim que, apesar de todo o seu talento – e, talvez, até em razão dele – Raul ia acabar introduzindo no estilo que não mais podia ser chamado de música caipira, mas de “música sertaneja”, no sentido moderno, uma novidade destinada a revelar no futuro uma influência arrasadora no campo das criações musicais “rurais” da região Centro-Sul: a moda guarânia, às vezes também denominada por ele de rasqueado estilo paraguaio.
Paralelamente a essa ação pessoal de Raul Torres (que de 1937 a 1944 faria dupla com o sobrinho Antenor Serra, o Serrinha, e daí em diante com João Batista Pinto, o Florêncio), a música caipira já transformada em “música sertaneja” contaria com sua conquista de 40% do mercado do disco brasileiro com o concurso de dezenas de duplas de cantadores. E, evidentemente, não apenas especialistas no gênero moda de viola, mas em toadas, cururus, cateretês, rasqueados, guarânias e, a partir da década de 60, em corridos, canções-rancheiras, valseados, recortados, toadas ligeiras, toadas campeiras, arrasta-pés, balanços, pagodes e quantos outros nomes vão sendo criados para designar variantes rítmicos-sonoras passíveis de serem obtidas a partir do acompanhamento de viola e violão.
Entre essas primeiras duplas estariam, além das originalmente lançadas por Cornélio Pires ou formadas por Raul Torres, Laureano e Soares, Flauzino e Florêncio, Mariano e Luizinho, na Columbia; Mandi e Sorocabinha, Nhô Pai e Nhô Fio, na Odeon; e, na Victor, uma longa lista que compreenderia, entre outros nomes, os de Alvarenga e Ranchinho (inicialmente incluindo a voz de seu lançador, O Capitão Furtado), Xerém e Tapuia, Xerém e Bentinho, Mariano e Laureano, Palmeira e Piraci (que ainda formaria dupla sucessivamente com Luizinho e Biá).
Um tipo de música que traduz a fidelidade de um povo às suas raízes
Com o advento, em 1951, do disco de long-playing no Brasil, a relação de novos artistas ligados à música rural cresceria ainda uma vez de maneira incontrolável. E isso tinha uma explicação. É que o surgimento dessas duplas caipiras no rádio e no disco anunciava, na verdade, o aparecimento de um público que, não ainda desvinculado de suas raízes rurais, sentia faltar alguma coisa na música que a cidade lhe oferecia. Já tendo acesso à cidade, ou mesmo residindo em sua periferia, o homem do campo precisava de um som que lhe lembrasse as músicas de sua região, mesmo que já estilizado sob a forma vaga e diluída dessa chamada “música sertaneja”.
A essa música inspirada nos sons ligados à área da viola – que abrange vasta região compreendida por quase todo o Estado de São Paulo, parte do interior do Estado do Rio e grandes espaços de Minas, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná – viria juntar-se ainda, a partir da década de 60, uma música nordestina que, igualmente fabricada no eixo Rio-São Paulo, passaria a receber o nome de “música de forró”. E isso traduzia, por sua vez, a nova realidade do avanço das áreas urbanas sobre as áreas rurais, através de um processo de industrialização que aproveita, agora, não apenas trabalhadores locais, mas movimenta grandes massas de antigos lavradores nordestinos migrados de suas regiões para se transformarem em mão-de-obra não especializada nos mais diferentes pontos do país.
No plano cultural, um dos aspectos mais curiosos desse moderno processo está sendo, exatamente, o da crescente diversificação do mercado de “música sertaneja”, em termos de consumo de uma variedade cada vez maior de gêneros musicais vagamente apoiados em sons regionais ligados ao mundo rural.
E, como para confirmar a explosão de uma nova realidade no mercado interno na área da música comercial, apesar das tentativas das empresas multinacionais do disco no sentido de impor seus gêneros universais a todo o país, com caráter de monopólio musical, a produção e a venda dessa genérica “música sertaneja” continuam crescendo. E isso ao som de toques rasgados que, sob o nome de rasqueados, não passam de imitação da forma pela qual os paraguaios executam suas polcas; ou dos trinados de pistons, no estilo dos mariaches mexicanos; ou, ainda, dos banjos, inspirados na música country norte-americana, já infiltrada de recursos do rock urbano. Ainda assim, tudo produzido com caráter de distinção da música comercial urbana, como se a maior parte do povo brasileiro ainda resistisse a passar, musicalmente, da manteiga de leite de vaca para a margarina fabricada pelas multinacionais. Como, aliás, comprovou o estrondoso sucesso, na época, de Fuscão Preto.

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